Sabe o que é e para que serve um Testamento Vital?
Por Joana Marques , 11 de Fevereiro de 2020 Longevidade
A morte é uma inevitabilidade. Ainda assim, cada vez se vive mais tempo e hoje em dia o processo de envelhecimento não é dissociável da evolução tecnológica da medicina e dos processos terapêuticos. Os avanços científicos no âmbito da saúde traduzem-se numa maior capacidade de interferência nos processos de morte, o que pode dar origem a situações em que são utilizados tratamentos fúteis e sem benefício para a pessoa em fase terminal de vida.
Paralelamente, na última década, o Estado e a comunidade científica têm trazido para o debate público a questão da ética no fim de vida, existindo atualmente legislação específica que permite ao cidadão decidir antecipadamente quais os tratamentos, intervenções e cuidados médicos a que deseja ou não ser submetido, em caso de uma futura incapacidade.
Numa altura em que a medicina parece já ter começado a assegurar a quantidade de vida, é importante que discuta com o seu familiar idoso a sua qualidade de vida e as questões éticas, legais e sociais que lhe estão inerentes, especialmente quando o processo de morte já se instalou e é irreversível.
Nesta altura o fundamental é respeitar a noção de dignidade de cada um. Converse com o idoso para perceber ao certo o que pretende.
É por isso que consideramos fundamental que saiba o que é e para que serve um Testamento Vital, um documento que preserva a dignidade da pessoa humana, a sua autonomia e autodeterminação quando não tiver capacidade para decidir sobre a sua situação clínica em fim de vida. Isto porque existem diversos fatores além dos clínicos que interferem neste tipo de decisões, como a generalização dos cuidados paliativos, o combate à dor crónica, à solidão e à exclusão social.
E quando não tiver capacidade de decidir?
Imagine que a vida de um familiar próximo e querido está por um fio, mantida por processos artificiais apenas possíveis devido aos avanços técnicos e científicos na área da Medicina. É uma situação em que ninguém quer estar: olhar para o rosto sereno de um ente querido enquanto os médicos avaliam se há possibilidade de vida além dos ventiladores, tubos de alimentação e resultados de exames. Será que era isto que os seus pais ou cônjuge iriam querer? E o leitor? Será que quer que lhe prolonguem o tratamento numa situação de morte cerebral? Será que quer tolerar dores graves e receber cuidados quando as suas hipóteses de recuperação são percentualmente muito reduzidas? Optaria por tratamentos experimentais, sem quaisquer garantias de sucesso?
A lei nº 25/2012 prevê o estabelecimento de diretivas antecipadas de vontade (DAV), sob a forma de testamento vital ou da designação de um procurador de cuidados de saúde.
Estas perguntas não são exclusivas da terceira idade, pois existem inúmeras situações em que as vidas de pessoas mais jovens ou de meia idade podem ser mantidas artificialmente devido a doenças irreversíveis ou estados vegetativos decorrentes de acidentes. No entanto, quando a pessoa se sente um elemento ativo e autónomo da sociedade, dificilmente irá antecipar o que deseja ou não quando estiver perante a iminência da própria morte. É neste contexto que é útil estar informado sobre o instrumento legal existente que permite ao idoso, ou ao procurador que ele designou manifestar antecipadamente a sua vontade consciente, livre e informada de decidir que cuidados de saúde deseja ou não receber quando for incapaz de expressar a sua vontade pessoal de forma autónoma.
Aspetos práticos: siglas a reter e o que determina a lei
O idoso ou o seu familiar só poderão discutir a pertinência de elaborar um testamento vital se souberem traduzir o jargão jurídico:
Testamento Vital - TV (ou Diretiva Antecipada de Vontade - DAV)
Um termo equivalente a Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) e trata-se do documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja ou não receber no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
RENTEV
É o Registo Nacional de Testamento Vital.
Procurador de Cuidados de Saúde (PCS)
É nomeado pelo próprio e que lhe atribui poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde a receber, ou não, pelo outorgante, quando este não for capaz de expressar a sua vontade. Em caso de incongruência entre o TV e o PCS, é o primeiro que prevalece, uma vez que traduz a vontade escrita do utente. Não é obrigatório que seja um familiar do idoso, mas sim alguém de confiança que conheça muito bem os seus valores e as suas vontades.
Embora o debate em Portugal em torno da legislação das DAV se tenha iniciado em 2006, na sequência de uma proposta de lei elaborada pela Associação Portuguesa de Bioética, a lei só foi aprovada em 2012. Estabelece o regime das DAV, quem pode fazer um TV, quais os documentos e requisitos necessários, entre outros aspetos práticos.
Pode fazer o seu Testamento Vital a qualquer momento
O Testamento Vital pode ser feito por residentes em Portugal, maiores de idade e que não se encontrem interditos ou incapacitados por anomalia psíquica. Pode fazer o seu a qualquer momento, estando apenas dependente do horário de atendimento dos balcões RENTEV, nos quais tem que ser obrigatoriamente registado.
O TV não tem custos, tem um prazo de validade de 5 anos após a data de ativação, e obriga à apresentação do número de utente do SNS e a um formulário (consulte aqui o modelo) em papel, reconhecido pelo notário ou com assinatura presencial num balcão RENTEV. Se não for registado, os desejos expressos no TV não têm qualquer validade, nem são vinculativas para os profissionais de saúde.
Não podem ser estabelecidas vontades que vão contra a lei
A maior parte das circunstâncias em que as DAV se aplicam constam da lei já mencionada, pois não podem ser estabelecidas vontades que vão contra a lei portuguesa ou que contrariem as boas práticas clínicas. Aliás, em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do idoso, se o acesso às DAV implicar uma demora que agrave o seu estado de saúde, a equipa médica responsável não tem o dever de ter em conta as DAV.
Embora exista um formulário modelo, recomenda-se que seja reservado um espaço no documento onde o idoso possa escrever sobre os motivos da sua decisão e os valores e as crenças em que esta se baseou, pois assim fica acautelada de forma mais fiel a sua vontade no que à ética diz respeito, mas também expresso que a decisão foi devidamente informada e que não é consequência de um quadro depressivo, ausência de apoio familiar ou da preocupação de não vir a tornar-se um fardo para os cuidadores, familiares ou profissionais de saúde.
Quais as vantagens do Testamento Vital para os idosos?
- Permite que o idoso decida antecipadamente sobre os procedimentos médicos e a atuação dos profissionais de saúde quando o processo de morte já se instalou;
- Determina se quer que sejam aplicadas medidas que impossibilitam a ocorrência de uma morte natural, muitas vezes à custa de sofrimento ou da degradação das suas condições físicas ou mentais;
- Permite determinar o que o idoso quer e não quer em caso de paragem cardiorrespiratória. Se o coração parar de bater, deseja ser reanimado? Se não conseguir respirar sozinho, deseja ser entubado? Se não é capaz de comer ou beber, deseja ser alimentado e hidratado artificialmente?
- Diminui a ansiedade e culpa dos familiares, quando são convocados para tomar decisões difíceis (desligar ou não os suportes artificiais de vida, que apenas estão a retardar o processo natural da morte);
- Aumenta o conhecimento dos médicos relativamente aos desejos do doente;
- Reduz o recurso à medicina defensiva, ou seja, a um conjunto de práticas «de defesa» por parte dos médicos como forma de evitar processos judiciais por negligência. Entre essas práticas, constam o pedido abusivo de exames, a prescrição de medicamentos não justificados ou o encaminhamento de doentes para outros médicos, sem justificação;
Quais as questões a ter em conta na elaboração do Testamento Vital?
Há algumas questões que é necessário ter em conta na elaboração do seu Testamento Vital.
Possível falta de atualidade do Testamento
Quer porque o outorgante pode mudar de opinião relativamente à vontade manifestada (durante 5 anos podem ocorrer uma série de acontecimentos, estados mentais ou emoções que têm consequências concretas nos desejos de fim de vida anteriormente declarados), ou porque não é possível se preverem os avanços terapêuticos e clínicos na área da medicina. O que anteriormente era considerado um tratamento desproporcionado pode no futuro passar a ser um tratamento adequado, no que se refere aos seus custos, riscos, grau de sofrimento que implica, entre outros.
As DAV são um consentimento prospectivo, ou seja, vão ser aplicadas num futuro desconhecido, o que pode implicar que os desejos do idoso não sejam totalmente objetivos e atuais. A decisão tomada aquando do registo das DAV no RENTEV é sempre relativa a uma situação futura imaginada. Aliás, é por essa razão que a lei não atribui um carácter inequivocamente obrigatório ao TV, que acaba por ser mais uma indicação para os médicos relativamente aos cuidados de saúde que o doente gostaria ou não de receber quando não for capaz de manifestar a sua vontade.
Falta de obrigatoriedade de acompanhamento
Uma consulta prévia do médico antes da elaboração e registo do TV não é obrigatória. No entanto, é fundamental que a redação do documento seja feita com as informações corretas e que tenha em conta todo o historial médico do idoso. O TV deve ser sempre redigido de forma livre, espontânea, mas, acima de tudo esclarecida.
A família deve estar envolvida nesta planificação do fim de vida que representa o TV, mesmo que ao longo do processo surjam divergências entre o idoso e as pessoas que lhe são mais próximas e queridas. Por vezes, não é possível haver uma total concordância entre as duas partes, por isso é muito importante que se reforce o diálogo entre o idoso e a família, mas também entre estes e os médicos e outros profissionais de saúde, pois é através deste diálogo a várias vozes que é possível conhecer os verdadeiros valores e desejos da pessoa.
É fundamental que todos os intervenientes sejam capazes de distinguir entre desejos de fim de vida e a eutanásia
O TV não serve para colocar fim à vida de forma deliberada e é essencial que se confirme se o idoso está deprimido aquando da redação do documento. O TV reconhece e respeita a visão que o idoso tem da sua própria morte, mas não legítima ou facilita de alguma forma os processos voluntários ou involuntários de eutanásia ativa ou passiva, ou seja, quer em situações em que o idoso desejaria receber uma dose letal de medicamentos para deixar de viver, ou situações em que o idoso deixa de receber algo de que precisa para sobreviver, quando existem meios que assegurem sem riscos ou sofrimento essa mesma sobrevivência.
Leitura sugerida
Em suma, o Testamento Vital é um instrumento previsto na lei que acautela os direitos dos doentes, nomeadamente os idosos que estão em fase terminal de vida. O processo natural de morte não deve ser travado através da obstinação terapêutica ou prolongado à custa do sofrimento do doente, o que normalmente pode ocorrer quando se adia a morte através de tratamentos médicos fúteis e inúteis.
Leitura sugerida: Ética no Fim de Vida - E Quando eu Não Puder Decidir? de Lucília Nunes