Lares e família em tribunal: O suborno para admissão
Por Sónia Domingues , 10 de Março de 2023 Notícias
«Lar exige suborno em troca de admissão». Este era o título que estava escrito em letras garrafais no jornal local daquela vila alentejana. O lar de idosos do Centro Paroquial, que tinha acordo com a Segurança Social, estava a cobrar 5000 euros ou mais para arranjar vaga. Ou o idoso ou a família pagavam no início, ou então o lar ameaçava aumentar a mensalidade. Apesar de ter acordo com a Segurança Social e ficar acordado um valor a pagar pela vaga social, o lar da aldeia pedia um determinado montante para garantir a vaga. Neste artigo, vamos contar-lhe uma história fictícia, mas que se baseia num acórdão e na sentença de um tribunal português. As personagens são fictícias, mas os factos são reais.
Um idoso precisava de uma vaga social em lar
Em troca da vaga, um lar exigiu dinheiro aos seus familiares
Tudo começou com uma denúncia. O senhor António José, idoso com algumas doenças associadas, já não tinha condições de viver sozinho na sua habitação e, após um internamento hospitalar, a assistente social da Segurança Social encaminhou-o para o lar do Centro Paroquial, que tinha acordo com o Estado. No entanto, o diretor do lar pediu à família que depositasse um montante de cinco mil euros, para que António tivesse vaga. Ora, a família revoltada negou-se a dar o montante que os responsáveis do lar pediram, e o senhor António acabou por não ir para o lar.
Surgiu uma notícia no jornal local a dar conta do caso
Foi através da família do senhor António que o jornalista da Gazeta Diária ficou a par do que se passava. Seria legal o lar cobrar para além daquele valor mensal que tinha sido estipulado pela Segurança Social, ou tinham que ser chamados a responder em tribunal pela natureza dos seus actos?
A notícia chegou ao doutor Arnaldo, procurador do Ministério Público, que prontamente iniciou uma investigação ao caso. Reuniu algumas provas para mostrar em tribunal, e falou com testemunhas que afiançaram a veracidade do caso.
O Ministério Público acusou o lar de idosos de corrupção passiva
Meses depois, munido de uma larga pasta cheia de papéis, apresentou uma acusação pública no tribunal local acusando o Centro Paroquial e os membros da direção do lar de idosos de corrupção passiva no setor privado. Para o procurador do Ministério Público, os fundamentos da acusação eram claros como água. Os diretores do Centro Social e Paroquial exigiam um suborno para os idosos terem preferência na admissão no lar, à revelia e sem o conhecimento da Segurança Social, com quem o lar de idosos tinha acordo. Havia duas pessoas dispostas a testemunhar em tribunal que disseram que se recusaram a dar o dinheiro e, como tal, os idosos não conseguiram vaga no lar. Isto constituía um crime de corrupção, segundo a acusação que o Ministério Público apresentou em tribunal.
No dia do Julgamento, o lar de idosos defendeu-se
A acusação referia que o único critério de admissão no lar era o dinheiro
A defesa não se fez esperar. A advogada, bem conhecida da povoação por ser muito perspicaz, contestou a acusação contra o lar de idosos e os seus diretores, armando-se com as brechas que encontrou na acusação levada a tribunal, para formar uma resposta à prova de bala. O Ministério Público em lugar nenhum da acusação tinha apontado que os réus tinham atuado no sentido de contornar as normas legais que estavam em vigor.
A advogada do lar apontou outros requisitos na lista de espera
«Como sabia a acusação que o dinheiro requerido era o único critério para a admissão dos idosos?»
Afinal de contas, disse a advogada de defesa em tribunal, os idosos podiam ter ingressado no lar com base noutros requisitos da lista de espera que não o dinheiro. Ou seja, a doutora Teresa em tribunal justificou que não configurava crime de corrupção passiva, uma vez que os acusados tinham obedecido a outros critérios para a admissão dos idosos no lar. Uma vez que a acusação era omissa em termos de requisitos da lista de espera, não daria para avaliar se se tratava ou não de corrupção passiva.
O tribunal de primeira instância tomou uma decisão
A absolvição do lar fez manchete nos jornais locais
No dia da leitura da sentença, a sala do tribunal foi pequena para tanta gente que queria assistir. Só os jornalistas da terra ocuparam dois bancos. No fundo, toda a gente pensava que o Centro Paroquial e os diretores do lar iam ser condenados.
Mas, espante-se, a decisão proferida pelo juiz foi a de absolvição. Conforme estava escrita a acusação levada a tribunal, a atuação dos réus não configurava nenhum tipo de ilícito criminal, uma vez que, tal como tinha justificado a defesa, o ministério público não disse, em parte alguma, que seria esse o único motivo de admissão no lar de idosos.
O tribunal não considerou que o lar exigisse um suborno para admissão dos idosos
Mal a decisão foi proferida, o doutor Arnaldo logo se apressou porta fora, mas foi impedido de sair do tribunal pela amálgama de jornalistas e câmaras que tinha à sua frente. Instado a comentar sobre a decisão do tribunal que absolveu os réus, o procurador sombriamente respondeu que não acreditava que a decisão fosse a mais justa, e, como tal, iria recorrer.
O caso foi a Tribunal Superior para um recurso
O Procurador do Ministério Público não tinha dúvidas da corrupção
Para o Dr. Arnaldo não havia a menor dúvida: os réus estavam a cometer um crime de corrupção passiva. Não compreendia a postura do tribunal, que não deu como provada a ligação entre o recebimento de quantias avultadas e a admissão dos residentes do lar. Então se até houve um familiar que deu um carro ao lar para obter uma vaga, isso não era crime? Mais, defendeu, seguindo o raciocínio do tribunal, basta um lar não ter afixado listas de espera bem como os critérios de admissão, tal como é obrigatório perante a lei, e já não é provado o crime? Foram estes os argumentos usados pelo Ministério Público para o recurso.
Apesar de pedir às famílias um valor que não lhe era devido, o lar não incorria em crime e foi absolvido pela segunda vez
Se a opinião pública estava ganha, os juízes responsáveis pelo acórdão não tinham tanta certeza disso. A questão que os juízes colocaram foi um mero pormenor técnico: a acusação em lado nenhum tinha escrito que o dinheiro era contrapartida para admissão do idoso naquela instituição.
Segundo o acórdão, «não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido solicitado pelos arguidos para permitir o acesso ao lar». Para os juízes, nada dizia na acusação que, se não dessem o dinheiro, os idosos não iriam conseguir entrar no lar, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto.
Ou seja, apesar de ficar provado que os réus pediam um valor que não lhes era devido, ficou por provar a outra parte, em que os arguidos teriam aceitado esse valor em contrapartida da obtenção de uma vaga.
Para se provar um crime é preciso uma acusação à prova de bala
Se um lar tem acordo com a Segurança Social e ainda exige mundos e fundos para o idoso ingressar no lar, isto pode constituir crime de corrupção passiva. Mas há que juntar outros detalhes e provas para que estes casos não sejam apenas considerados como injustos e pouco claros. Tal como vimos neste acórdão, apesar de ser pouco ético, apenas cobrar um valor inicial não afigura um quadro de corrupção passiva. Para ser crime, terá de ser provado que a lista de espera foi alterada com vista a dar prioridade ao idoso que pagou ou que, se não tivesse pago o suborno, não teria preenchido os requisitos prévios para dar entrada naquele lar.
Cobrar um valor inicial não afigura um quadro de corrupção passiva por si só: tem de se provar que este suborno é o fator diferenciador na atribuição de vaga em lar.
Por vezes, a Justiça Portuguesa tem destas coisas. Aquilo que toda a gente, no seu senso comum, teria considerado crime de corrupção passiva, a Justiça diz que não é suficiente para configurar crime.
Numa adenda final a este caso de tribunal, fica-se com a sensação que a Segurança Social deveria estudar uma nova forma de atribuir os apoios do Estado para o lar de idosos, para evitar este tipo de postura incorrecta na hora de integrar os idosos num lar.