Lares e família em tribunal: a herança deixada à dona do lar

Por Sónia Domingues , 18 de Dezembro de 2023 Notícias

Vindo de uma família numerosa, o senhor Vasco era um dos sete filhos de um casal abastado. O idoso sempre sonhou em ter também uma família grande, mas para seu desgosto, ele e a sua esposa não conseguiram deixar herdeiros que prolongassem o legado da família e a quem pudessem deixar a herança. Conformados, foram administrando os seus bens, e criando ainda mais património. Vasco ia convivendo com os seus seus tios e primos direitos, até porque ainda tinham algumas contas em conjunto, provenientes de negócios e propriedades deixadas em herança pelos avós. 

Mas, quando a dona Regina ficou debilitada, o casal mudou-se para um pequeno lar de idosos, com apenas cinco residentes, que ficava no centro da cidade de Vilas Novas. Pouco tempo depois, a sua esposa morreu, deixou-o ainda mais debilitado, uma vez que ele sofria de cancro da próstata. No entanto, nada fazia prever à família o que iria acontecer após o seu funeral.

Neste artigo, vamos-lhe contar uma história ficcionada de uma decisão concreta do tribunal português, que resulta de um caso verídico.



Os idosos não tinham suporte familiar


O casal debilitado decidiu ingressar num lar de idosos

Após alguns sintomas preocupantes, o senhor Vasco recebeu o temido diagnóstico: tinha um cancro. A piorar a situação, a esposa estava cada vez mais envelhecida e sem forças para prestar os cuidados ao esposo. Sem filhos, foi ele que tomou a decisão de ingressar num lar de idosos bem no centro da cidade. Naquela casa senhorial antiga mas muito bem preservada, o idoso sentiu-se muito bem acolhido, por ser pequena e ter apenas cinco residentes. O lar de idosos era propriedade da enfermeira Maria de Fátima, que trabalhava  no hospital público daquela localidade, e do seu marido, também ele enfermeiro.



A esposa do Senhor Vasco faleceu e o idoso viu-se sozinho

A dona Regina começou a piorar a olhos vistos. O seu estado de saúde piorou rapidamente, e, num abrir e fechar de olhos, faleceu nos braços do marido. Sem filhos, o senhor Vasco apenas contava com os primos, mas a distância entre o lar e a localidade onde vivia a família acabava por ser impedimento a visitas frequentes. O idoso sentiu-se cada vez mais sozinho e sem apoio. Precisava também de ajuda para cuidar do seu extenso património. Algumas propriedades tinha-as recebido de herança dos pais já falecidos e partilhava-as com outros tios.

Proprietária do lar aproximou-se do idoso​


O idoso era acompanhado pela dona do lar nas idas ao banco

Os primos visitavam o senhor Vasco de tempos a tempos, até porque ainda tinham contas em comum, das propriedades que tinham recebido de herança dos seus pais. Mas o idoso sentia-se cada vez mais perdido e isolado, sem o apoio da adorada esposa. No entanto, dentro das paredes daquela instituição, encontrou um suporte inesperado. 

A proprietária do lar, Maria de Fátima, muito simpática e prestável, ofereceu-se para fazer as deslocações com o senhor Vasco, e sempre que precisava acompanhava-o às consultas e ao banco. A dona do lar chegou até a acompanhar o Senhor Vasco ao funeral de uma irmã. Entretanto, cada vez mais enfraquecido pela doença, o idoso teve de ser sujeito a um procedimento médico que permitia os rins funcionarem melhor.



O idoso passou uma procuração para a proprietária do lar

O tempo ia passando e o senhor Vasco cada vez mais precisava de auxílio no seu dia-a-dia, apesar de continuar a fazer os seus passeios e ir ao barbeiro e, Maria de Fátima, sempre próxima, era amiga e confidente do senhor Vasco, de tal modo que lhe foi passada uma procuração, de modo a poder tratar dos assuntos pessoais do Senhor Vasco. A dona do lar acompanhava frequentemente o Senhor Vasco ao banco e chegou a ficar com a co-titularidade de algumas contas bancárias. 



​O idoso faz da proprietária do lar, a herdeira dos seus bens

Dois anos depois de a esposa falecer, numa bela manhã, o idoso, acompanhado de Maria de Fátima, entrou no cartório notarial. O senhor Vasco, já com grandes dificuldades, assinou o testamento que fazia da enfermeira a herdeira universal de todos os seus bens. O estado debilitado e frágil do Senhor Vasco era visível pela sua assinatura tremida. Maria de Fátima iria assim receber a totalidade da herança deixada pelo idoso.

Primos do idoso contestam o testamento


Um ano depois, o idoso já muito débil, acaba por falecer

Apenas um ano e dois meses após a assinatura do surpreendente testamento a deixar a herança a Maria de Fátima, o senhor Vasco deu o último suspiro, tendo o idoso apenas 74 anos de idade. No dia seguinte ao funeral, a enfermeira Maria de Fátima reclamou a herança total do senhor Vasco, apresentando-se com o testamento do senhor Vasco.
Para os primos foi uma total surpresa, até porque havia várias propriedades que eram partilhadas por outros membros da família, fruto da herança deixada pelos avós em comum. Os primos do idoso decidiram naquele momento que iriam contestar a validade do testamento em tribunal.


Primos do idoso pedem a nulidade do testamento ao tribunal

Os quatro primos direitos do Senhor Vasco entraram com uma ação em tribunal, referindo que a herança lhes era devida e solicitaram a nulidade do testamento ou a anulação da disposição testamentária, que atribuía à enfermeira e proprietária do lar de idosos toda a herança. 

A advogada alegou em tribunal que, sendo ela enfermeira do senhor Vasco, o testamento seria nulo, isto porque o artigo nº 2194 do Código Civil diz que «é nula a disposição a favor do médico ou enfermeiro que tratar o testador». Alegava ainda a advogada em tribunal que a dona Maria de Fátima não deveria herdar a herança, uma vez que o testamento deveria ser dado como nulo.

A proprietária do lar de idosos negou veementemente que tivesse coagido o senhor Vasco a dar-lhe a herança e garantiu que os serviços de enfermagem estavam a cargo do seu marido. Posto isto, a meio do julgamento, a advogada dos primos alegou em tribunal outro artigo. Por ser casada com o enfermeiro que prestava os serviços ao idoso, o código civil ditava a nulidade daquela cedência quando feita por “interposta pessoa”, tal como um cônjuge.


O Tribunal de 1ª Instância confirma a legalidade do testamento

No dia da leitura da sentença, toda a gente estava ansiosa para que o juiz daquele tribunal desvendasse a quem, de facto, pertencia a farta herança. Na sentença, a ação interposta pelos primos foi considerada improcedente e manteve a herança na posse de Maria de Fátima. O tribunal não deu como provado que a dona do lar era a responsável pelos cuidados médicos ao senhor Vasco. 

Também não ficou provada a alegação de que o idoso foi coagido. A advogada de defesa também tinha pedido a nulidade do testamento por Maria de Fátima ser casada com o enfermeiro que cuidava do senhor Vasco, mas como essa intenção não estava na ação inicial, o juiz não a levou em consideração. Os primos, desamparados, ficam surpreendidos com a decisão do Tribunal. Maria de Fátima continua a ser a herdeira do senhor Vasco…

Primos do idoso recorrem da sentença


O apelo dos primos centrou-se no que foi dito pelas testemunhas

A advogada dos primos, no apelo ao Tribunal da Relação, pediu para reavaliar a posição do juiz no que concerne à herança deixada pelo idoso, que depreciou o facto de a proprietária do lar de idosos ser casada com o enfermeiro que lhe fazia os tratamentos, apenas porque não estava vertido na ação inicial. 

A advogada pediu para ser ampliada a matéria de facto. Mas, para além disso, solicitou aos juízes da Relação que reapreciassem os relatos das testemunhas, porque considerou que houve “obscuridade, deficiência e omissão” na decisão do juiz de primeira instância. 


Juízes da Relação mantêm a decisão


A herança pertencia legitimemente à proprietária do lar

No caso da herança deixada à proprietária do lar, os juízes do Tribunal da Relação tiveram uma resposta que surpreendeu os mais incautos sobre os preceitos da lei portuguesa. Em primeiro lugar, salientaram que, pela lei, nunca poderiam ter reavaliado todas as provas produzidas na primeira audiência, sendo obrigados apenas a apreciar os factos que estavam no apelo. 

​Ora, a advogada dos primos baseou-se na avaliação que o primeiro juiz fez do que foi dito pelas testemunhas. Na realidade, eles não poderiam subverter o princípio da livre apreciação da prova, ou seja, se o testemunho A valia mais do que o testemunho B.

Na lei portuguesa, um Tribunal de Segunda Instância não está à procura de uma nova convicção, mas sim procura ver se a convicção do primeiro juízo é razoável. A advogada solicitou no apelo para darem mais valor ao que disseram alguns testemunhos ao contrário de outros, mas o juiz do tribunal de primeira instância fundamentou bem os motivos que o levaram a tomar essa posição e os juízes da Relação não viram razão para tal. 


Uma situação que podia ter sido evitada


Idosos não acompanhados ficam particularmente vulneráveis.

Neste caso ficcionado de uma decisão real de um acórdão do Tribunal da Relação sobre o testamento de um idoso, fica claro que, por vezes, há situações que fogem do controlo da família e que podem ser aproveitadas por quem convive de perto com os idosos. 

Situações como a do Senhor Vasco ocorrem com alguma regularidade, principalmente com idosos mais desamparados e debilitados, que ficam sujeitos à influência exterior em momentos que estão mais frágeis. De facto, a família deve estar muito atenta a situações como estas, para evitar constrangimentos futuros.

Os idosos devem ser bem acompanhados e auxiliados em todos os momentos, mas para evitar este tipo de constrangimento, a atenção deve ser redobrada principalmente para idosos sem descendentes diretos. A escolha segura de um lar de idosos é fundamental para evitar este tipo de ocorrência que são altamente constrangedoras para toda a família.


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