Lares e família em tribunal: a artimanha da Seguradora

Por Sónia Domingues , 22 de Fevereiro de 2024 Notícias


Nenhum dos oito filhos de Ester Rodrigues imaginou que a mãe iria morrer de forma tão trágica. Após receber o diagnóstico de demência, a idosa foi integrada num lar de idosos. Os filhos sempre pensaram que a mãe iria falecer por alguma complicação relacionada com a doença, mas nunca imaginaram que ela teria um acidente tão trágico e evitável, nas mãos dos cuidadores.

A Dona Ester ficou viúva e pouco depois surgiram os primeiros sintomas da sua demência, o que levou ao progresso da doença e à necessidade de ingressar num lar de idosos, para ter o apoio que necessitava. Mas, uma distração levou a uma queda fatal. Os filhos fizeram queixa contra o lar em que a mãe estava, que por sua vez, delegou a responsabilidade civil à companhia de seguros, com a qual tinha realizado um contrato de seguro. Neste artigo, vamos revelar um caso verdadeiro, que foi julgado nos tribunais portugueses, mas com personagens fictícias.


Diagnosticada com demência a idosa é colocada num lar de idosos 


Esquecimentos e discurso confuso despertam preocupação da família

Foi numa conversa telefónica que a filha mais velha da Dona Ester reparou que algo não estava bem com a mãe. Algumas conversas com a idosa não faziam sentido e, para a filha que era uma enfermeira experiente, era um sinal claro que tinha de levar a mãe a fazer uns exames e análises para despistar alguma patologia mental. A Dona Ester fê-los, um pouco contrariada, e foi-lhe diagnosticada, sem surpresas, uma demência.


Um pequeno incêndio em casa da idosa precipita a decisão

Com 84 anos de idade e com um diagnóstico de demência, tornava-se cada vez mais perigoso a idosa viver sozinha. Um pequeno incêndio derivado de um aquecimento na casa de Dona Ester, foi determinante e os filhos tomaram a decisão de integrar a mãe num lar, com a maior brevidade possível. Encontraram a solução mais adequada ao estado de demência da idosa, num lar de idosos pertencente a uma Santa Casa da Misericórdia. Pouco depois, Dona Ester deu entrada no lar de idosos, no qual teria vigilância 24 horas, e alguns cuidados de saúde assegurados.

Três anos depois, sofre um acidente trágico


A idosa perde o andar com o avançar da doença 

A Dona Ester ia piorando conforme o tempo passava. Apesar de estar acompanhada e a tomar medicação, invariavelmente foi perdendo capacidades e após três anos a viver no lar de idosos começou a ter dificuldades na marcha, estando mais sujeita a quedas que poderiam provocar ferimentos graves. Dada esta condição, a idosa passou a ser transportada em cadeira de rodas com o apoio das auxiliares, mesmo com a utilização do elevador para se deslocar nos diferentes andares da moradia.


Certo dia, presa à cadeira de rodas, cai de umas escadas

Como era costume, naquela manhã a auxiliar Maria de Jesus guiou a Dona Ester até às portas do elevador, que dava para mais do que um idoso e a auxiliar fez como sempre e como era regra no lar: foi buscar os outros idosos, que depois ficavam no corredor à espera da sua vez para descer. 

A Dona Ester estava sonolenta, devido à medicação que tomava e de forma a evitar que deslizasse na cadeira, Maria de Jesus colocou-lhe uma cinta de retenção e encostou-a na parede, junto ao elevador e às escadas. Entretanto tinha-se dirigido a outro quarto buscar a Dona Amélia. De repente, ouviu um grande estrondo vindo do corredor e gritos dos idosos que lá estavam. Quando deu por ela, a Dona Ester tinha caído pelas escadas, presa na cadeira de rodas e parou no patamar intermédio, tendo a cadeira ficado em cima da idosa. Foram chamados os bombeiros e a VMER (Viatura Médica de Emergência e Reanimação) ao local, mas a idosa tinha batido com a cabeça: estava muito roxa e a sangrar.


A morte da idosa é declarada no local em consequência do acidente

Chegados os bombeiros ao local, viram que a Dona Ester estava em paragem cardiorrespiratória, tendo iniciado de imediato as manobras de reanimação. Quando chegaram os médicos da VMER, avaliaram a idosa e chegaram à conclusão que não havia mais nada a fazer. O médico legista foi chamado, assim como a GNR e a Polícia Judiciária. A diretora técnica do lar ligou a Antónia e, pesarosamente, contou-lhe o ocorrido. Estupefacta, a filha de Dona Ester ficou a saber da morte acidental da mãe e avisou os irmãos, alguns deles a viver no estrangeiro, que teriam de regressar a Portugal por causa da morte inesperada da mãe.

A autópsia ao corpo da idosa  revelou a extensão dos ferimentos que sofreu na queda fatal e o relatório refere que a queda de dona Ester tinha provocado um traumatismo crânio encefálico e paragem cardiorrespiratória, associada à lesão cervical por estiramento, tendo sido a causa direta do seu óbito. 


Filhos da idosa processam o lar por incumprimento do contrato


Para os filhos, o lar não garantiu a segurança e a vigilância da idosa

Provas mostram que a morte da idosa tinha sido provocada pela queda, os irmãos reuniram-se e avançaram com um pedido de indemnização ao lar de idosos, por incumprimento de contrato, uma vez que garantia a vigilância da idosa. Perante o tribunal, os oito filhos referiram os gastos das viagens e do funeral da mãe (danos patrimoniais), assim como o sofrimento deles perante a morte da mãe (dano não patrimonial).


Auxiliar declara eventual falha no sistema de retenção da cadeira e ausência de barreiras de segurança nas escadas

Na sala de tribunal reuniram-se os filhos, a administração e as auxiliares do lar, juntamente com testemunhas de ambos. 
Maria de Jesus, auxiliar que transportou a idosa ao elevador, foi a primeira testemunha. A mesma referiu estar a seguir o protocolo do lar e as instruções da equipa de saúde. Afirmou não saber a causa do acidente, uma vez que Dona Ester se encontrava a cerca de cinco metros das escadas. Contudo, pensa que pode estar relacionado com o facto da cadeira não ter o sistema de retenção a funcionar. Posteriormente, averiguou-se em tribunal que as escadas, por servirem de acesso em caso de urgência, não tinham barreiras de segurança.

Lar acciona seguro de Responsabilidade Civil


Apesar da culpa, o lar transfere responsabilidade para seguradora

Após o julgamento no Tribunal de Primeira Instância, a administração do lar da Santa Casa assegurou ao tribunal ter alterado os procedimentos de transporte dos idosos dos quartos para a sala de refeições. Os idosos deixaram de ficar sem supervisão nos corredores.

Posto isto, o lar avançou com a transferência da responsabilidade civil à companhia de seguros. Segundo o diretor, o lar de idosos tinha feito uma apólice de seguro há alguns anos, que garantia a Responsabilidade Civil de Exploração, para a atividade de Lares de 3ª Idade, com um capital de seguro de €500.000,00, com um sub-capital por sinistro de €250.000,00 e uma franquia contratual de 10% dos danos, a ser acionada a partir dos €250.


Seguradora escuda-se nas condições particulares da apólice de seguro

O advogado da companhia de seguros defendeu que o contrato referia que tinha por objeto a “garantia da responsabilidade civil extracontratual e a responsabilidade civil contratual, quando esteja expressamente prevista na condição especial contratada que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado enquanto na qualidade ou no exercício da atividade expressamente referida nas respetivas condições especiais e particulares.” No entanto, o advogado da companhia de seguros referiu que a responsabilidade daquele caso não se integrava no contrato assinado, que continha várias condições particulares, entre elas uma que exclui a responsabilidade civil profissional.


O Tribunal condena a seguradora a pagar a indemnização

Meses após o julgamento no Tribunal de Primeira Instância, chegou o dia da leitura da sentença. Os filhos da idosa não tinham quaisquer dúvidas da responsabilidade do lar e o mesmo não apresentou defesa nesse sentido. Referiu apenas ter uma apólice de seguro que cobria a sua responsabilidade. 

No entanto, o advogado da companhia de seguros estava convencido de que o tribunal a iria isentar de qualquer responsabilidade. Mas o juiz não ficou convencido com a justificação da companhia de seguros e condenou-a a pagar aos filhos os danos patrimoniais e não patrimoniais, num total de 129 mil euros. O lar, por sua vez, teria de pagar 10% desse valor, relativo à franquia do seguro. O lar e a companhia de seguros teriam, também, de cobrir os custos do julgamento.

A Seguradora não concorda com a resposabilidade imputada

Para a seguradora a apólice não cobria os danos reclamados 

Após a leitura da sentença, os filhos ficaram parcialmente satisfeitos, perante as circunstâncias trágicas da morte da mãe. A companhia de seguros não se conformou e decidiu recorrer. Segundo o advogado, a apólice de seguro não cobria os danos reclamados pelo segurado, nem concordava com os valores monetários que tinham sido fixados pelo tribunal.


O objeto do recurso era provar que o sinistro tinha ocorrido fora do âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil, celebrado com o segurado. 



Para o advogado da companhia de seguros, se a idosa caiu por falta de vigilância da auxiliar, o seguro não teria de cobrir. Logo, se o lar quisesse a cobertura total do contrato de prestação de serviços acordado com a família em questão, então teria de estar expressamente escrito no contrato com a seguradora. Deste modo, pediu a redução do valor da indemnização. 


O lar exige a cobertura dos riscos profissionais com os idosos

No apelo que seguiu para o tribunal da Relação foi submetida a argumentação do recurso pelo lar, que quis manter a decisão tomada no Tribunal de Primeira Instância.


Para o lar, o contrato que tinha assinado com a companhia de seguros teria, obrigatoriamente, que cobrir a responsabilidade civil contratual, porque se assim não fosse, a cobertura seria nenhuma. 



O advogado do lar colocou em perspetiva a situação da apólice de seguro não cobrir os riscos profissionais com os idosos, que advém da função de um lar de idosos. Se assim fosse, a apólice apenas cobriria eventuais acidentes com visitas, o que não faria qualquer sentido. 

O Tribunal desmascara a artimanha da Seguradora


A decisão dos juízes do Tribunal Superior incidiu sobre o facto do seguro feito pelo lar cobrir a responsabilidade civil contratual ou apenas a extracontratual, em conjunto com o montante de indemnização atribuído aos filhos da Dona Ester. 

Os juízes concentraram-se no contrato entre o lar e a companhia de seguros. Sublinharam que, habitualmente, as condições particulares são escritas pela seguradora, sem negociação. Logo, o seguro será mais benéfico para a companhia de seguros. No entanto, se a apólice de seguro estiver sujeita a várias interpretações, deve valorizar-se aquela que favoreça o segurado, neste caso, o lar. Por outro lado, se o contrato não é claro, deve ser a seguradora a suportar as consequências, uma vez que violou o dever de clareza e rigor das condições particulares.

Mesmo com a apólice de seguro a conter uma cláusula a dizer que não garantia os danos que adviessem da responsabilidade civil contratual ou profissional, o que é facto é que a apólice de seguro indicava que se tratava de um seguro que cobria os danos inerentes à exploração do estabelecimento comercial e locais afetos à sua atividade. Neste caso, a atividade do lar de idosos é cuidar e vigiar os seus residentes.


O Tribunal concluiu que a apólice de responsabilidade civil teria que cobrir, necessariamente, situações de lesões à integridade física ou morte de residentes do lar. 



Os juízes do Tribunal da Relação acordaram na manutenção da responsabilidade da companhia de seguros. No entanto, diminuíram o montante da indemnização.

Falhas que reforçam a importância de fazer uma escolha segura de lar


A história, para além de trágica, serviu de alerta para o lar sobre alguns dos seus procedimentos, de modo a evitar estes incidentes.

O lar de idosos nunca se desresponsabilizou, ao contrário da companhia de seguros que procurou evitar indemnizar os filhos de Dona Ester. No entanto, o Tribunal acabou por expor esta estratégia de má conduta e garantiu que a seguradora tinha, de facto, responsabilidade. O que se conclui deste acórdão é a importância da consulta com um advogado, quer para as famílias como para o próprio lar, de modo a evitar injustiças.

Neste caso, a família fez bem em recorrer aos tribunais e exigir ser ressarcida da morte trágica que ocorreu por falha e o lar de idosos recorreu à apólice de seguro, que pagava continuamente há vários anos e que se recusava a fazê-lo a coberto de condições particulares dúbias. 
As famílias devem considerar as diferentes opções que existem, de forma a fazerem uma escolha segura, informada, como também devem ter em atenção todas as informações presentes no contrato e no regulamento interno das instituições, de modo a evitar desavenças futuras. 


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