Eutanásia: há verdade na frase «não matem os velhinhos»?
Por Joana Marques , 03 de Março de 2020 Notícias
Qualquer frase que contenha o termo «eutanásia» dá origem a discussões acaloradas. O tema é polarizador e sensível. Os argumentos a favor e contra são defendidos por ambas as partes com igual paixão, o que é compreensível quando se debatem questões sobre a vida e a morte. Cinco votos foi quanto bastou para que a despenalização fosse chumbada em Maio de 2019, mas a aprovação desta lei polémica aguardava apenas uma nova relação de forças no Parlamento.
Opiniões à parte, o dia 20 de Fevereiro de 2020 é histórico: os cinco diplomas a favor da eutanásia foram aprovados, mas agora é necessário definir um texto comum para que a lei seja promulgada.
Estar contra ou a favor da eutanásia leva a que muitas vezes se confundam as dimensões médicas, morais, éticas e jurídicas deste assunto e o ponto de vista é defendido consoante as crenças (religiosas e políticas) de cada um. No entanto, uma coisa é certa: enquanto sociedade, temos que ter a capacidade de colocar de lado os nossos pontos de vista e compreender os contornos do que foi realmente aprovado e que implicações poderá ter numa sociedade cada vez mais envelhecida.
Os idosos estão em perigo?
O dia 29 de Maio de 2019 ficou marcado por dois acontecimentos: a despenalização da Eutanásia foi chumbada por uma diferença de cinco votos e celebrizou-se a frase “por favor não matem os velhinhos”, escrita num cartaz que se tornou viral nas redes sociais e nos meios de comunicação social.
É bizarro associar a despenalização da eutanásia a uma espécie de abertura de época de caça aos idosos.
A estudante de medicina que segurava este cartaz foi alvo de duras críticas. A afirmação incomodou todos sem excepção, mas a ideia inicial era chamar a atenção para a vulnerabilidade dos idosos perante a legalização da eutanásia. É certo que uma vez aprovada a lei, a eutanásia continua a ser uma opção, nunca uma obrigação. Ainda assim, a discussão que se gerou em torno daquele cartaz continua a ser válida, porque levanta algumas questões que os idosos e seus familiares devem ter em consideração: a morte assistida é preferível ao investimento em cuidados paliativos e serão estas realidades mutuamente exclusivas?
Eutanásia não é senicídio!
Os termos senicídio e geronticídio ainda não constam dos dicionários em português, mas isso não significa que a realidade que traduzem seja inexistente no nosso país. São palavras utilizadas para designar o abandono dos idosos à morte, mas também o suicídio ou o assassinato de idosos.
Alguns idosos sentem-se um fardo para as famílias ou um passivo financeiro para a sociedade. Tais sentimentos não legitimam o suicídio medicamente assistido.
Um dos maiores receios dos que são contra a despenalização da eutanásia é que a morte se banalize. Nenhum dos projetos aprovados no dia 20 de Fevereiro prevê o alargamento dos serviços de morte assistida a todos os idosos que manifestem o seu cansaço perante a vida. Ainda assim, na Holanda e na Suíça, países em que a eutanásia não é criminalizada, o debate já ultrapassou as condições restritivas em que a morte assistida pode ocorrer.
Despenalizar a eutanásia não dá o direito de solicitar auxílio médico para morrer em qualquer circunstância.
O envelhecimento é um processo complexo que não é acolhido com agrado por todos. Existem muitos estereótipos negativos sobre os idosos que colocam uma carga de negativismo adicional a uma época da vida que já é normalmente associada à debilidade física e mental e à perda de autoestima e sentido para a vida. No entanto, o idoso e a sua família devem combater o pessimismo associado à terceira idade e exaltar as potencialidades do envelhecimento ativo, pois só assim se previnem situações como as que estão a acontecer em países onde a eutanásia é legal há mais tempo, e de que são exemplo:
- O caso holandês, onde se instalou um debate sobre a disponibilização de um comprimido letal a maiores de 70 anos que estejam cansados de viver, sem que seja necessária prescrição médica;
- O caso suíço, onde se discute a legitimidade de organizações privadas (de que é exemplo a Exit) alargarem a morte assistida a idosos que não são doentes terminais e que querem pôr fim à vida simplesmente porque já estão numa idade avançada.
A futura lei deverá acautelar este tipo de situações, que nunca estiveram em discussão em Portugal, mesmo que seja aceite pela comunidade médica que a maior parte das pessoas que pede a morte assistida não comete suicídio se o seu pedido for negado. Além disso, a questão do senicídio deve ser discutida com o idoso, pois a taxa de suicídio é tradicionalmente mais elevada entre os seniores.
O sofrimento implica a morte antecipada?
O debate em torno da eutanásia divide-se sempre entre os que são contra e a favor. Não é frequente existir um meio termo e a discussão facilmente se transforma num campo de batalha, no qual os argumentos são utilizados como armas para atacar o ponto de vista do outro.
Os principais argumentos a favor da prática legal da eutanásia são o alívio da dor e do sofrimento que o paciente considera serem insuportáveis e o respeito pela autonomia e liberdade individual de cada um. Os principais argumentos contra são a inviolabilidade da vida humana, o aumento do risco de maus usos e abusos e a incompatibilidade com a missão primordial da medicina, que é combater a doença e conservar a vida (argumentos que também estão na base dos médicos que se assumem com objetores de consciência).
O termo dignidade é central. Todos os pacientes em fase de fim de vida desejam uma morte digna e que esteja alinhada com os valores filosóficos, religiosos e éticos pelos quais se guiaram durante a vida.
É comummente aceite que um ser humano física e psicologicamente saudável não deseja a morte. Logo, escolher morrer não é uma escolha natural e óbvia. Na sociedade atual continua a existir um elevado número de suicídios, mas será que uma decisão dessa magnitude significa que de facto a pessoa queria morrer ou desejava simplesmente pôr fim ao sofrimento? Esta é uma outra discussão, outro tema tabu na nossa sociedade, mas que convém ter em consideração quando falamos de eutanásia, uma vez que a depressão afeta muitos idosos ao longo do processo de envelhecimento.
Ideologias e crenças à parte, a despenalização da eutanásia não deve ser encarada como uma espécie de via verde rumo ao fim do sofrimento.
Ainda não se sabe o que irá estabelecer a lei, mas parece-nos importante alertar para o facto de que um fim de vida digno não é sinónimo de morte ou suicídio medicamente assistido. Esta é uma das razões pelas quais os idosos com doenças terminais ou lesões irreversíveis devem considerar todas as alternativas à eutanásia, para que não seja tomada uma decisão que apenas reflete um estado de espírito momentâneo ou é influenciada por aspetos psicossociais. O idoso e os seus familiares devem discutir outras opções, como:
A possibilidade de fazer um Testamento Vital que permite ao idoso decidir antecipadamente, de forma livre, consciente e informada, se deseja medidas terapêuticas que impossibilitem a ocorrência de uma morte natural, à custa da degradação das suas condições físicas ou mentais;
A opção pelos cuidados paliativos como forma alternativa de atenuar o sofrimento físico, emocional, espiritual e social do idoso em fase terminal. É uma alternativa ao suicídio “lúcido”, que não implica excessos terapêuticos, mas sim cuidados humanizados e solidários.
A aprovação da eutanásia é o início de um longo caminho
A vitória do sim não significa que a partir de agora qualquer pessoa possa pedir a morte medicamente assistida. A lei não vai ser promulgada de imediato e o processo legislativo está apenas no início. Vai ser preciso negociar um texto comum a ser aprovado numa votação final global no Parlamento (em junho ou julho), que posteriormente pode ser vetado pelo Presidente da República ou enviado para o Tribunal Constitucional.
Existem questões em aberto. Quem pode requerer a eutanásia? Quem aprova? Onde pode ser feita? Qual o nome da lei?
Há uma terceira via, que parece improvável, mas que pode ganhar força nos próximos meses de trabalho da comissão parlamentar de Saúde: o referendo. Os movimentos pró-vida e anti-eutanásia, com o apoio da Igreja Católica e dos partidos mais à direita do espectro político já estão a recolher as 60 mil assinaturas necessárias com o objetivo de propor uma iniciativa de cidadãos para a realização do referendo, que se for entregue terá que ser obrigatoriamente discutida e votada.
Cinco coisas que deve saber sobre a futura lei
Num assunto tão delicado como o da despenalização da eutanásia, não é possível fazer futurologia. Ainda assim, consideramos que deve ter conhecimento do que vai ser discutido na generalidade e estará na base da futura lei. Acompanhe a evolução deste assunto para que possa ter conversas informadas com o seu familiar idoso!
1 - Qual o nome da lei?
Há partidos que falam na despenalização da eutanásia (PS) e outros que mencionam expressões como «morte medicamente assistida» (PEV e PAN), «antecipação da morte» (BE) e «antecipação do fim de vida» (IL). Em termos gerais, estas nomenclaturas referem-se à mesma coisa, mas queremos sublinhar que eutanásia e «suicídio medicamente assistido» (SMA) não significam o mesmo.
Todos os textos em discussão admitem que a morte medicamente assistida pode ser auto-administrada (SMA) ou por administração médica (eutanásia).
A eutanásia é o ato a pedido da própria pessoa de terminar a vida e, simultaneamente, o sofrimento numa situação de doença incurável ou definitiva, que implique um sofrimento duradouro, extremo e insuportável. O SMA distingue-se precisamente pela forma como é administrado o fármaco letal, que é auto-administrado pelo próprio doente. Ambos os atos não dispensam a intervenção e supervisão médica.
2 - Quem pode pedir a eutanásia?
A própria pessoa que deseja antecipar a sua morte, desde que cumpra os seguintes requisitos: ser português ou residir legalmente no país, maior de idade e que esteja em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal.
Estas disposições têm como objetivo prevenir a morte a pedido, que a eutanásia se transforme num negócio ou em turismo da morte e prevenir facilitismos como a pílula sem dia seguinte, cuja distribuição a idosos com mais de 70 anos está a ser discutida na Holanda.
3 - O que implica o processo?
Quem se decidir consciente e informadamente pela morte assistida vai ter que reunir mais do que um parecer médico favorável, inclusivamente psiquiátrico. Poderá ser constituída uma comissão que se responsabilize pela posterior verificação do procedimento seguido em cada caso e se a lei foi devidamente aplicada.
4 - Onde pode ocorrer a eutanásia?
Idealmente, a eutanásia deverá decorrer num estabelecimento de saúde do SNS ou em hospitais privados, mas não está ainda excluída a hipótese de o fármaco letal ser administrado em IPSS, Misericórdias, lares particulares ou no domicílio.
5 - O requerente pode ser eutanasiado se estiver inconsciente?
A resposta é curta e direta: não!
A eutanásia tem que ser uma decisão consciente, informada e passível de ser expressa no momento em que o requerente deseja começar o processo, que é imediatamente interrompido se o paciente ficar inconsciente, entrar em coma ou ficar em estado vegetativo.
Mantenha-se informado e interessado e invista na literacia em saúde física e mental do seu familiar idoso para que o tema da eutanásia possa ser discutido sem preconceitos ou sentimentos de culpa.