«A morte é um dia que vale a pena viver», Ana Claudia Quintana Arantes
Por Catarina Bouca , 16 de Julho de 2019 Idosos
A morte e tudo o que gira à volta deste tema que a sociedade insiste em evitar é o que Ana Claudia Quintana Arantes explora no seu recente livro «A morte é um dia que vale a pena viver». Geriatra e especialista em Cuidados Paliativos, a médica brasileira relata a vivência da morte por parte de quem está a morrer, da sua família e amigos, dos cuidadores, da comunidade médica e da sociedade.
«Morrer é o ato mais íntimo de um ser humano e isso deve ser respeitado mais do que tudo», refere Ana Claúdia, alertando que mesmo quando a doença não tem cura o ser humano pode ter. Uma obra recheada de humanismo que serve de referência para todos nós.
O Lares Online entrevistou Ana Claudia para saber mais sobre este tema.
A morte deve ser assunto de conversa entre as pessoas da terceira idade?
Eu penso que as pessoas idosas querem, sim, falar sobre a morte, mas muitas vezes têm medo. E cada vez que tentam falar do assunto com outras pessoas, nomeadamente cuidadores e profissionais de saúde, ouvem resposta do tipo: “Não vamos falar sobre coisas tristes. Vamos ser positivos!” Existe uma incapacidade em falar sobre esta temática por parte de quem escuta. O meu conselho é que o interlocutor deve dar espaço aos idosos para conversar sobre o assunto ao invés de evitá-lo.
Existe algum país que seja de referência no que respeita ao debate do tema da morte entre a população idosa?
O país que presta melhores cuidados a nível do fim da vida é a Inglaterra. Mas para isso acontecer foi preciso criar um ministério da Solidão para abordar todas as questões que com ela se relacionam.
Pela sua experiência no contexto brasileiro, as equipas técnicas preocupam-se em debater, entre a própria equipa e com os idosos que cuidam, a temática da morte?
A experiência que eu tenho aqui no Brasil é muito má. Eu trabalhei durante vários anos numa instituição de idosos, inclusivamente foi lá que a minha mãe recebeu cuidados no fim da sua vida, e acabei por deixar aquele trabalho. Isto porque a proprietária da instituição não permitia que se tocasse no assunto da morte e não suportava quando eu abordava a temática com as idosas com quem trabalhava. Esta senhora reflete o pensamento da maioria das instituições para idosos brasileiras. Pela minha experiência, os próprios idosos e as respetivas famílias têm mais facilidade em abordar a questão da morte do que as equipas técnicas dos lares.
No contexto brasileiro, como é que os lares de idosos lidam com as mortes que recorrentemente acontecem e que apoio prestam às famílias e aos outros utentes?
Aqui no Brasil as instituições para idosos não estão capacitadas para dar suporte ao luto. Quando algum idoso da instituição morre, o comportamento geral é “poupar” os outros idosos da notícia. Sei de um caso de duas senhoras que viviam juntas num lar e que eram grandes amigas. Uma delas foi hospitalizada e quando já estava a morrer a amiga soube e comunicou ao lar que gostaria de ir ao hospital despedir-se da colega. A equipa técnica fez tudo para que isso não acontecesse com o argumento de que a senhora deveria ser “poupada”. O resultado foi que a senhora ficou muito revoltada por ter sido demovida de um ato de despedida que para si era de grande importância.
Os idosos estão mais preparados para a morte do que as pessoas de outras faixas etárias?
Eu acho que a idade da pessoa não tem a ver com a sua preparação para a morte. É a forma com a pessoa viveu a sua vida que faz com que esteja mais ou menos preparada para a morte. Há pessoas de 75 anos que parecem grandes adolescentes porque acham que a vida não acaba. O que acontece é que na hora de morrer fica muito difícil para estas pessoas. Por outro lado, há pessoas jovens que são muito livres, que se têm algo difícil para viver vão em frente, mesmo tendo medo vão na mesma.
Contudo, devo dizer que a idade pode favorecer a preparação para a morte, isto porque uma pessoa mais velha normalmente já viveu várias perdas ao longo do caminho o que facilita o entendimento de que o seu tempo possa estar a chegar ao fim.
No seu livro "A morte é um dia que vale a pena viver" diz que a medicina se preocupa com a doença e não com o doente. Uma vez que a doença não tem mais solução, o doente deixa de ser preocupação.
Esta é a minha observação no dia a dia como profissional de Cuidados Paliativos. Os profissionais de saúde são treinados para tratar a doença. As pessoas que estão doentes acabam por ser um instrumento para os médicos verificarem os sintomas, estabelecerem um diagnóstico e tratarem a doença. Na minha perspetiva, a cura para a doença pode falhar mas a pessoa portadora da doença nunca falha. Os profissionais de saúde têm dificuldade em compreender esta realidade porque não foram ensinados nem sabem lidar com o sofrimento humano.
A morte ainda é um tema tabu nas nossas sociedades. Quais as razões para isso? E como podemos inverter esta realidade?
A morte não pode ser um assunto tabu porque vai acontecer a todos nós. As pessoas evitam falar sobre esta temática porque não sabem falar sobre perdas. A nossa sociedade não sabe perder nem lidar com a frustração. Uma boa conta bancária não alivia um diagnóstico mau. O carro mais confortável do mundo não dá conforto nenhum na hora da morte de um pai ou de um filho. O que dá conforto nessa hora é ter alguém a quem ligar nas noites de insónia que se seguem a um acontecimento de perda.
Já viveu algum processo de luto? Como foi?
Já vivi vários. O primeiro foi a morte da minha avó, que faleceu no dia da minha formatura, e ninguém me avisou porque me quiseram “poupar”, mas a verdade é que eu já estava a perceber que alguma coisa se passava e por isso me sentia muito triste. O segundo foi com o meu pai, que faleceu de doença aguda. De seguida, a minha irmã, que tinha uma patologia psiquiátrica, faleceu de cancro. O meu processo com ela foi sempre difícil. Primeiro a doença psiquiátrica, depois o cancro. Também tive duas amigas que faleceram de cancro e fui eu que as acompanhei nos Cuidados Paliativos. Em 2016, perdi a minha mãe e foi uma despedida muito bonita.
A Dra. Ana Claúdia é docente na School of Life. Como tem sido a sua experiência em lecionar nesta escola tão progressista?
Eu fui convidada para dar cursos sobre como lidar com a morte na filial brasileira do School of Life. Tenho gostado bastante porque as pessoas que frequentam os cursos normalmente são bastante conectadas. Elas buscam verdadeiramente uma relação com elas próprias e com os outros.
Como vê a situação dos Cuidados Paliativos um pouco por todo o mundo? Que alterações propõe?
Eu vivo num país muito precário em termos de Cuidados Paliativos. Embora o que exista nesta área seja de boa qualidade, temos muito pouco ainda. Aqui no Brasil, o nosso objetivo é aumentar o alcance deste tipo de cuidados. A recente política pública de integrar os Cuidados Paliativos nas unidades básicas de saúde deixou-me muito feliz. Agora o desafio é sensibilizar os líderes governamentais de todo o país, já que o Brasil é muito grande! A nível mundial, considero que o melhoramento dos Cuidados Paliativos passa por mais educação nesta área.
Que conselho deixa às direções técnicas dos lares quando o assunto é morte?
Penso ser necessário abrir o espaço de conversa sobre este assunto com os utentes e as suas famílias. Uma forma de fazer isso é passar um filme sobre a temática e depois acender as luzes e conversar sobre o que é o filme despertou na consciência e na vida de cada uma das pessoas que assistiram ao mesmo. Existem vários filmes leves que, no entanto, abordam a temática da morte. Gostaria também de dizer que uma das coisas mais vergonhosas que assisto entre os profissionais de saúde e aqueles que trabalham nos lares é a decisão de que os doentes/utentes não têm de falar sobre o assunto da morte. Isto não faz sentido nenhum porque são estas pessoas que vão ter de enfrentar a sua própria finitude. Estes profissionais não têm o direito de tomar decisões sobre algo que eles próprios não têm capacidade de lidar. Este é o meu grande conselho.
O Lares Online agradece profusamente a Ana Claudia pela entrevista à qual acedeu participar. Temos muito a aprender acerca da morte e de como lidar com ela, particularmente em residências sénior.