Lares e família em tribunal: morte atribuída ao lar

Por Sónia Domingues , 25 de Setembro de 2023 Notícias


Quando o senhor Gomes deu entrada no lar de idosos da terra, encontrava-se muito fragilizado, apesar de ter tido alta hospitalar. Com 76 anos de idade, tinha sofrido um AVC que o obrigou a um internamento hospitalar de quase duas semanas. A esposa já não tinha condições de dar-lhe o apoio e os cuidados que ele necessitava, até porque corria o risco de ter uma queda e depois ela não iria conseguir erguê-lo do chão. Os filhos trabalhavam em tempo integral e a solução que melhor satisfazia as necessidades de conforto, segurança e cuidados de enfermagem era um lar de idosos. Mas, passado pouco mais de dois meses, o senhor Gomes acabou por falecer depois de ter dado entrada no hospital, mais magro e febril. Para a família não havia dúvidas: o lar não tinha cumprido com a obrigação contratual de providenciar os cuidados de saúde e enfermagem que constavam no contrato. Neste artigo, vamos contar-lhe um caso que chegou às barras de um tribunal português. Apesar dos fatos relatados serem reais, a história e as personagens são ficcionados. 

O ingresso num lar após alta hospitalar


O idoso sofreu um AVC devastador que o deixou com graves sequelas

Depois de uma vida muito ativa, o senhor Gomes foi diagnosticado com uma artrose, que lhe limitava os movimentos. A partir daí, a vida começou a ser diferente. Já não podia andar de bicicleta como costumava e foi ficando mais em casa. A esposa, Dona Anita e os dois filhos foram vendo como a saúde do idoso se foi deteriorando, mas, teimoso, recusava-se a ir ao médico. No entanto, nada fazia prever o AVC devastador que o senhor Gomes sofreu. Levado de urgência para o hospital, o idoso ficou com graves sequelas e apenas teve alta passado algumas semanas. 


A família integrou o idoso num lar de idosos do qual tinha ouvido falar

Ainda durante a estadia no hospital, os médicos informaram a família que o Senhor Gomes iria sofrer sequelas do episódio de AVC e mesmo que melhorasse um pouco com fisioterapia, iria ficar dependente de terceiros para conseguir movimentar-se em segurança. A família ponderou as possibilidades, mas, dada a fragilidade do idoso, o mais indicado seria o ingresso num lar de idosos, que poderia providenciar cuidados adequados, segurança e conforto ao familiar. A Dona Anita tinha ouvido falar de um lar próximo de casa que tinha boa reputação e a admissão foi feita em pouco tempo, dada a urgência do caso. Mas, a escolha pouco ponderada iria causar consequências devastadoras.


A família via o idoso todas as semanas e que este ia perdendo peso

A esposa do senhor Gomes era visita frequente no lar. Apesar do idoso estar muito debilitado e ter dificuldades em exprimir-se, a Dona Anita gostava de passar tempo com o marido e mostrar o carinho que nutria por ele. Já os filhos também visitavam regularmente o pai, mas mais ao fim-de-semana, por questões laborais. O lar de idosos cuidava bem do idoso, mas tinha pouco apoio para quem precisava de cuidados 24 horas por dia. A dificuldade em alimentar-se e engolir os alimentos foi uma consequência direta do AVC e, apesar de contar com a ajuda de uma auxiliar na hora das refeições, o senhor Gomes ia perdendo peso. A família sabia das limitações do idoso e não atribuiu grande importância ao emagrecimento do idoso, até porque, como a Dona Anita viria a afirmar em tribunal, o senhor Gomes “nunca foi gordo”.

A saúde do idoso deteriora-se rapidamente


O idoso adoece após um mês no lar e a enfermeira chama o médico

Estava o mês de agosto a chegar ao fim quando a enfermeira de serviço no lar de idosos detectou que o senhor Gomes não se encontrava bem. O médico foi chamado e, após a consulta, receitou-lhe uns medicamentos antipiréticos para a febre, e antibióticos para a infeção urinária que entretanto tinha contraído. Posteriormente naquele dia, quando a dona Anita foi visitar o marido, a diretora técnica do lar inteirou-a do estado de saúde do seu marido, tal como veio a ser provado em tribunal. O idoso encontrava-se ainda mais debilitado e poucas palavras trocou com a esposa naquele dia, o que causou maior preocupação à idosa.


Dois dias depois, é levado ao hospital que lhe dá alta no mesmo dia

Dois dias depois de ter sido detectada a febre, o senhor Gomes, apesar da medicação, não dava sinais de melhora. O médico voltou ao lar de idosos para verificar o estado do residente e decidiu que o melhor seria encaminhar o senhor Gomes para o serviço de urgência do hospital local, juntamente com o relatório médico detalhado que mencionava que o senhor Gomes encontrava-se com febre há já três dias.

Perante a situação, a diretora técnica do lar de idosos ligou à Dona Anita, para lhe dar conta da situação. Já no hospital, o senhor Gomes fez exames e análises para determinar o diagnóstico e passou algumas horas mas foi-lhe dada alta naquela mesma madrugada, mas, segundo o que a diretora técnica viria afirmar em tribunal, não lhe forneceram nenhuma informação relevante sobre o seu estado de saúde. Foi-lhe apenas receitado um paracetamol para a febre e um antibiótico.


No dia seguinte, piora e regressa ao hospital, onde acaba por morrer 

No dia seguinte, a nora do idoso, esposa do filho mais velho, foi visitar o senhor Gomes e encontrou-o prostrado na cama, despido, com manifesta dificuldade em respirar e nem sequer lhe conseguia responder. Vendo o estado em que o idoso estava, chamou a enfermeira. Diligente, a profissional colocou o idoso a oxigénio e soro, durante pouco mais de meia-hora, a ver como ele reagia. Mas o idoso não parecia melhorar e a enfermeira voltou a chamar uma ambulância. O senhor Gomes deu entrada no hospital pouco tempo depois, tendo-lhe sido atribuída uma pulseira laranja, que apenas são entregues a casos muito urgentes.

No relatório do episódio de urgência que foi lido em tribunal, dizia que o idoso já tinha estado no dia anterior na urgência e apresentava uma infecção respiratória, tendo feito broncodilatadores durante algumas horas. No entanto, dizia no relatório, o lar não tinha aspirador, por não ter enfermagem permanente, pelo que o paciente voltou ao hospital novamente com febre, afásico e magro. Com uma situação clínica muito débil, o idoso, apesar da medicação, não voltou a registar melhorias e faleceu passados três dias.

A família não compreende a morte do idoso


A família pede explicações sobre os cuidados de saúde contratados

A família enlutada não se conformou com a morte do senhor Gomes e pediu explicações à diretora técnica do lar de idosos. Não percebiam porque o idoso não tinha tido acesso aos cuidados de saúde e enfermagem que necessitava em permanência. A diretora técnica explicou que no contrato e no regulamento estava indicado que os cuidados de enfermagem não eram 24 horas por dia e que a família não tinha dado a informação que o idoso iria necessitar de cuidados de saúde contínuos. Alegou que na altura do ingresso, o idoso não apresentava essa necessidade e por essa razão o admitiu. Mas, ao longo do tempo que esteve no lar, sempre foi tratado com grande cuidado e carinho. Não obstante a explicação, a família não se conformou com a morte do idoso.


Não convencida, a família procurou os conselhos de um advogado

Não concordando com a posição do lar de idosos, a família procurou conselhos junto do advogado da família. Queriam saber se havia matéria para levar o lar ao tribunal, porque consideravam que a falta de cuidados permanentes de enfermagem foi o motivo pelo qual o familiar faleceu. Para o advogado, já muito experiente, não havia condições de alegar maus tratos ou negligência por parte da família, porque não havia quaisquer indícios de maus-tratos no idoso e a família também não tinha reportado nada de estranho ou impróprio até aquela data. Para além disso, o lar gozava de uma reputação imaculada junto da população e das famílias. Mas acreditava que havia alguma culpa do lar em relação ao agravamento da situação.


Advogado acredita haver matéria para pedir uma indemnização ao lar

Depois de ter acesso ao contrato assinado entre o lar de idosos e a família Gomes, o advogado da família acreditou que havia matéria para pedir uma indemnização por incumprimento do contrato, agravada pela morte do idoso. Alegou que a família celebrou um contrato de prestação de serviços com o lar de idosos, obrigando-se este a providenciar ao idoso cuidados de alojamento, alimentação, higiene e cuidados preventivos de saúde, bem como serviço médico e de enfermagem de rotina e de emergência e serviço de fisioterapia.

​O contrato especificava que o lar providenciava serviço médico e de enfermagem de rotina e emergência e na óptica da família, esses cuidados não foram prestados, o que incorria num quadro de incumprimento contratual, agravado pela morte do idoso. Por isso, pediam uma indemnização € 3.230,00 a título de danos patrimoniais, mais € 5.000,00 à Dona Anita, por sofrimento causado e € 2.500 a cada filho, pelo mesmo motivo. 


O lar defende-se em tribunal e passa a responsabilidade à família

Tendo reputação e o bom nome do lar a defender, a proprietária, que era simultaneamente a diretora técnica do equipamento, lamentou que o senhor Gomes tivesse falecido pouco depois de ter dado entrada no lar de idosos, no entanto explicou que a situação clínica se agravou muito rapidamente e fizeram tudo o que podiam por ele.

A doutora Carla Esteves acreditava que o contrato foi cumprido e mostrou-se, mesmo assim, solidária com a família, lamentando a sua perda. Disse ainda que as visitas dos familiares eram regulares e que o estado de saúde do idoso era comunicado aos familiares, tal como estava escrito no processo clínico e nos registos diários do lar. A diretora técnica afirmou que a família sabia que o lar dispunha apenas de serviço de rotina normal de enfermaria, de segunda a sexta, na parte da manhã, e, em caso de emergência, seria chamada ou uma enfermeira ou o médico contratado, consoante o caso. Mais, acrescentou, o idoso sempre foi muito bem tratado e estimado, oferecendo-lhe os cuidados de saúde que estavam contratados.

A enfermeira fez o que estava ao seu alcance, tendo o idoso sido visto por um médico que o medicou e, quando os sintomas não registaram melhorias, foi novamente avaliado pelo médico e enviado para o serviço de urgência. 


A sentença foi proferida a favor do lar, mas a família decide recorrer

Depois do julgamento, e após algum tempo de espera, as duas partes foram chamadas ao tribunal para ouvir a sentença. O juiz, um homem de meia-idade já com muita experiência, chegou à conclusão de que o lar de idosos tinha de facto cumprido o contrato a que se obrigou, nomeadamente ao dever de cuidados de alojamento, alimentação, higiene e cuidados preventivos de saúde, bem como serviço médico de rotina e de emergência, serviço de enfermagem e serviço de fisioterapia. Para o juiz, a família não tinha direito a nenhuma idemnização pela morte do idoso, uma vez que não tinha sido provado em tribunal o incumprimento do contrato. A dona Anita e os filhos ficaram surpresos com a decisão do juiz, uma vez que acreditaram de facto que tinham a razão do seu lado e, logo ali, decidiram recorrer da sentença para o tribunal superior. 

A família insiste na falha dos cuidados em Tribunal


O advogado alegou erro na apreciação dos factos por parte do juiz

O advogado da família acreditava que o juiz não tinha avaliado bem as provas, que assentavam nos depoimentos da família e nos relatórios médicos das urgências. Segundo o advogado, os relatos da família apontavam para a falha nos cuidados a que o lar estava obrigado. Para o advogado, não ficou provado que quando o idoso teve alta na primeira vez, os médicos não passaram informações sobre o verdadeiro estado de saúde à responsável do lar. Ao invés, acreditava que tinha ficado provado em tribunal, que os médicos tinham dado indicação para realizar aporte de oxigénio e aspiração. O tribunal de primeira instância também não tinha dado como provado que o lar de idosos não tinha serviço de enfermagem, entre outros pontos de menor importância, que o advogado queria que fossem apreciados no Tribunal de Relação.

O Tribunal não legitimou a exigência da família


O Tribunal não reconhece a ligação entre a morte e o serviço prestado

De pouco valeu o apelo da família ao Tribunal da Relação, uma vez que confirmou por unanimidade a sentença inicial, o que deixou a família enlutada devastada. Para os juízes, caberia à família fazer a prova do defeito, do dano e do nexo de causalidade, mas falhou nessa missão.

Segundo o Tribunal da Relação, não se conseguiu provar a ligação direta entre a qualidade do serviço contratado ao lar e a evolução do estado clínico do idoso e o seu falecimento, nem o incumprimento do contrato. Os juízes também destacaram o testemunho de uma médica, que referiu que se o tratamento com oxigénio fosse vital, o doente não teria tido alta. Também explicou a razão pela qual o idoso estava despido, por causa de estar a fazer febre, devia estar o mais descoberto possível para estar mais fresco. Para desânimo da família, o tribunal julgou improcedente o recurso, confirmando integralmente a sentença original, outorgando as custas do processo à família que tinha recorrido.  


A importância de escolher um lar adequado ao idoso


Com este caso que saiu do tribunal português, fica destapada uma realidade bastante habitual, que é o ingresso no lar, após um internamento hospitalar. Muitas vezes, a família protela a entrada no lar, por várias razões e, quando de facto o idoso ingressa num equipamento,  já vem muito fragilizado e por mais cuidados que o lar disponibilize, não é possível reverter a sua situação clínica e acaba por falecer passado pouco tempo. Esta situação é, infelizmente, muito recorrente no nosso país, uma vez que existe uma desconfiança generalizada dos lares de idosos. No entanto, muitos lares de idosos proporcionam cuidados e serviços seguros, em que os idosos se sentem confortáveis e seguros. Mas, infelizmente, não podem inverter o envelhecimento nem as doenças associadas, apenas podem tratar de proporcionar o maior conforto ao idoso.


O que importa reter neste caso é que é fundamental que a família faça uma escolha segura de um lar que tenha as condições apropriadas ao estado de saúde do idoso



​Este setor é multifacetado e oferece várias opções, mas, sem apoio especializado, a família pode sentir-se desorientada e escolher um lar de idosos com base nas opções que conhece, em vez de se aconselhar junto de profissionais especializados que poderão ajudar a família a reconhecer as verdadeiras necessidades do idoso.
A Lares Online proporciona o apoio especializado que as famílias necessitam para fazerem uma escolha segura. Ajudamos as famílias, de forma gratuita, a fazer a melhor escolha de cuidados para os seus familiares idosos.


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